sexta-feira, 11 de julho de 2008

HOJE ACORDEI COM UMA VONTADE ENORME...

"...De destruir a vida de alguém..."
(.:Verdades Satíricas:.)

Uma manhã quente como os infernos não poderia ser diferente. Lençóis suados e frios pegando nas minhas costas porque esqueci de colocar uma camiseta antes de dormir. Um pé do chinelo que simplesmente decidiu desaparecer por absoluto naquela dimensão onde um dos pés dos nossos pares de meias favoritos cismam em ir parar, e de lá somente regressarem após a gente colocar fora o pé que havia sobrado.

Era um complô sim. Mas não um complô comum. Era um complô em favor de meu mau humor, e obviamente, por conseqüência, um complô contra o mundo que me cercava, pois ali decidi: Hoje vou destruir a vida de alguém.

Dentre todas as lâminas que o homem fabricou até hoje, com o advento da ciência ultra evoluída, nunca, jamais, em hipótese alguma, gerou-se nada capaz de superar o poder cortante de minha língua associada a um violento mau humor. Afinal, de uma vida que de sucessos conheceu apenas o desejo, que de sonhos conheceu apenas a interrupção justamente nos momentos de gozo, as 5h e 45min da manhã de qualquer dia que fosse onde meu deprimente emprego exigisse que eu estivesse, a produzir matricialmente a riqueza de um homem que nunca sequer vi. É uma boa razão – Hoje eu destruo a vida de alguém.

O café... Esse sim nunca me traiu, ajuda a manter as dores de cabeça em relativo controle, e dizem que mantém o sono longe. E se já sinto sono o dia todo tomando café, imagina se não tomo! Sim ele vai me dar o primeiro prazer do dia... Merda... Um gole sedento e profundo de café “adoçado” com sal. Por que diabos são iguais esses potes?

Chega, vamos lá, tenho uma vida pra destruir, hoje acabo com alguém, e só preciso olhar e dizer a verdade. A verdade é suficiente pra acabar com qualquer alma feliz.

Por falar em felicidade, isso é uma palhaçada. Não existe, nem nunca existiu. É pura ilusão. Sempre tem um cretino pra dizer: “Felicidade não existe, somente momentos felizes!” – Isso quando não aparece um cretino mais cretino ainda pra dizer coisa pior: “A felicidade é a gente que faz!”... Definitivamente cretinos. O que existe é a ausência de cretinisse e infelicidade, e isso posso provar pra qualquer um (que não seja um cretino, óbvio).

Qual não foi minha satisfação ao sair no portão de meu barraco e dar-me de frente adivinha com quem? Ah...! Aquela figura ridícula e presa fácil: O Carteiro. Quer coisa mais ridícula que um homem de meia idade vestido de amarelo gritante e azul-saco andando por aí distribuindo cartinhas? Ah, ele vai me ouvir, aquele ridículo. Na minha mente começou a formar-se o argumente perfeito, e ele jamais conseguiria entregar uma carta novamente sem lembra-se do quão ridículo ele era. Saberia do quanto sua insignificância e frustração eram evidentes no jeito de andar, de fugir de cachorros, de bater palmas para pegar assinaturas, de caminhar por aí feito um imbecil por um salário indigno e interesse de desinteressados por ele. Ah, que maravilha!

- Bom dia seu Amaro! Olha só, ontem passei aqui para lhe entregar este telegrama registrado, vi que o senhor ainda não havia chegado, mas sei que o senhor sai sempre cedo, junto comigo, resolvi guardar pra lhe entregar aqui, para que não voltasse lá pra central, causando transtornos para retirar.

Por um momento fiquei pensando... Quem é esse homem que nunca vi na vida? Que sabe onde moro, sabe meu nome, o horário que saio pra trabalhar, e vem cheio de simpatias sem nunca sequer ter recebido um cumprimento meu (eu é que não perco tempo dando “oizinhos” pra cada um que vejo)...

Sem responder peguei o telegrama, com a curiosidade dividida entre a carta e o homem misterioso, e fui desacelerando o passo conforme tentava ler as letras trepidantes, mas sem conseguir concentrar-me nem numa coisa, nem noutra. O Carteiro acelerou o passo, para não perder o ônibus, faltavam ainda umas duas quadras até o ponto de ônibus. Então consegui ver o que se revelava como: “Querido Amaro! Finalmente encontramos você, depois de tanto anos! Como você está? Teus amigos aqui querem muito saber notícias... blá, blá, blá...”.

Sim, “blá-blá-blá”, pois simplesmente não consegui nem continuar, atônito por ter sido lembrado por... nem lembrava mais por quem. E quando dei por mim, estava estático, parado com a carta na mão. E subitamente lembrando que ia perder meu ônibus, e na seqüência, o emprego, onde atraso não era admitido!

Mas era tarde, faltava quase uma quadra inteira, e vi o ônibus passar pela esquina... Me lasquei... Apenas mantive o passo numa esperança inútil de que não fosse e o meu, e sim o que passava antes deles, atrasado, que tudo ficaria bem. Tem idéia da sensação do pânico que me percorreu? Não tem não. Era pé na bunda, na certa.
Mas, quando me aproximei da parada, qual não foi minha surpresa! O coletivo ali, parado, me aguardando, com uma figura amarela gritando na porta da frente, dependurado: “Vamos, vamos, pedi pra pro motorista te esperar, anda!”

Maldito carteiro. Como eu ia acabar com a vida dele agora? Cretino.

Havia ainda um banco logo atrás da roleta (catraca, para alguns), e tratei de adiantar-me e sentei. Ele postou-se em pé, ao meu lado, calado e compenetrado na janela. Fiquei torcendo para que não ficasse puxando papo, odeio conversas de ônibus, não tem coisa mais chata. À minha frente, a figura tétrica do cobrador (trocador, para alguns), morrendo de sono, quase dando cabeçadas na sua gaveta de moedas. Que ridículo. Seria ele. Sim, ele ia ser destruído!
- Hei, cobrador! Tava de festa ontem? Não consegue nem parar sentado...
- Não senhor, era velório. Minha mãe de criação faleceu, foi péssimo... Nem folga consegui hoje, mas vou tentar agüentar o dia de trabalho, apesar da tristeza. Puxa vida, ela era tudo pra mim... A melhor mãe do mundo.

Duvidei... Acho ainda que ele estava de festa, mas na dúvida, melhor não questionar. Vai que é verdade e a falecida vem me puxar os pés de noite... Não que eu acredite, mas melhor não arriscar. Segui em frente, entediado.

De repente, lembrei-me: A carta! Afinal, quem era esse remetente esquecido, que de alguma forma me achara? Desembrulhei o bendito papel, confesso, com alguma ansiedade. Nem me lembro da ultima vez que recebi uma carta antes dessa. Recebi?

Para não continuar do blá blá blá, reiniciei a leitura: “Querido Amaro! Finalmente encontramos você, depois de tanto anos! Como você está? Teus amigos aqui querem...”

- Moço, será que o senhor se importa de segurar isso pra mim? – Mas antes mesmo que eu pudesse responder, ou sequer ver direito a dona da voz feminina e irritante que me perguntara, pousou sobre minha carta uma enorme sacola de pelúcia, cheia de mamadeiras, cobertores (que tipo de criatura anda com cobertores num dia quente que nem hoje?), e um monte de porcarias dessas que bebês gostam que suas patéticas mães carreguem. E não poderia piorar. Ela levava o bendito bebê no colo, fazendo questão de enfiar a fralda polpuda na minha orelha. É. Seria uma viagem ao inferno hoje.

Estava fervendo. E certamente me deixava a face rubra. Era meu sangue, prestes a ebulir. Faltava bem pouco. E de repente... O som denunciava eventos bem ali, na minha orelha esquerda. O bebê fez a única coisa que sabia produzir na vida. Sim. Olhei para a janela ansioso para que estivesse aberta, antes que o fedor me entranhasse pelos poucos cabelos. Segundos depois já estava calculando o tamanho da abertura da janela em relação ao tamanho do simpático bebê fedorento. É. Eu ia dizer as verdades que merecia ouvir toda a mãe chata que carrega bebês em ônibus lotados de trabalhadores que atravessavam toda a periferia e meia cidade para chegar aos seus malditos empregos.

Cheguei a postar-lhe os olhos, anunciando que diria algo e... Percebi que passou-lhe por sobre o ombro um braço generoso... Talvez do tamanho da minha perna em sua melhor época. É. Preferia destruir a vida de alguém sem destruir minha arcada dentária, já faltosa de alguns entes queridos.

O ar da metrópole nunca foi tão puro! Pernas duras, mas acostumando-se a andar enquanto descia os degraus do coletivo, depois de quase hora e meia esmagadas pela sacola, e, depois de certo trecho, pela criança que fui escalado pelo marido para carregar até que cedesse o lugar. É. Finalmente pude descer e devolver um bebê de fraldas cheias e cheirosas para sua mãe.

Apenas três quadras, e meu posto de trabalho chegaria. Ah, a vida deu-me, depois de tantos anos, a posição de fiscalizador daquilo que antes, até bem poucas semanas atrás, era minha função! E havia bastante gente que poderia ser facilmente e merecidamente destruída! O dia chegou! A porta se abriu. Entrei. E lá estavam eles. Meus fiscalizados e suas caras tortas, sabiam que seriam realmente fiscalizados! Sim, seriam mesmo! Mas somente no momento em que eu conseguisse terminar de ler minha carta.

Fui buscar um canto um pouco mais isolado, logo após bater meu ponto. Um canto qualquer sossegado bastaria, não passavam de duas páginas. Apesar de detestar ler, a caligrafia era até bem boa, leria rapidamente: “Querido Amaro! Finalmente encontramos você, depois de tanto anos! Como você está? Teus amigos aqui querem...” – Seu Amaro, por favor, o pessoal vai reunir ali na recepção, tem colega novo.

Ah, os novatos... Eu ainda não havia tido a chance de colocar as mãos num novato bisonho para arrancar-lhe cada resquício de dignidade! Finalmente, chegara a hora!

E qual não foi minha surpresa! Era um homem de grande porte! E casualmente, o homem que me largara no colo uma criança fedorenta, mesmo sob minha recusa, abusando de minha condição desprivilegiada. Lá estava ele, com uma cara de tacho ridícula, e ainda sem uniforme. Ah, prato cheio. Terei o prazer de não demiti-lo nunca, não sem que antes desejasse muito. As coisas pareciam caminhar para a perfeição!
Seu Amaro, esse é Jorge, como gosta de ser chamado, o novo...

- Jorge? Ah, sim, e ainda gosta de ser chamado? – Vi de cara que ele já estava me reconhecendo, pelo sorriso tímido que esboçou.
- É, eu prefiro ser chamado pelo nome, gosto de manter a informalidade, sabe...
- Claro, claro, Jorge. Mas gosto de ser chamado de Seu Amaro. E, melhor! Prefiro toda a formalidade do mundo! E trata de ir direto pro vestiário tomar um banho, tu estás fedendo a bosta de criança de colo. Pode ser que não gostes de carregar as besteiras que tu fazes nas costas e passar para as costas dos outros, mas aqui, podes ter certeza, vai aprender a colocar os pingos nos “Is”.

- Mas... Seu Amaro, eu...
- Poupe-me, rapaz. Me procures somente quando tiver algo de útil pra dizer. De abobrinhas basta as que tenho que aturar de meus chefes dementes. Mas se tenho que aturar esses imbecis, pode acreditar, tu consegues me aturar. Terás que fazer força, mas acho que consegue. Ou não quer o emprego?

- Puxa... quero sim. Nunca quis tanto. Eu...
- Ta, some da minha frente e vai colocar teu uniforme, pois tenho mais o que fazer, e preciso ler uma maldita carta.
- Tudo bem, Seu Amaro. Obrigado pela orientação. Eu...
- “Eu” o quê, criatura?

- Eu só queria me apresentar... Jorge, sou o novo chefe do RH, fui transferido da matriz pra cá essa semana, pra resolver uns probleminhas que têm acontecido por aqui. Aliás, lhe pediria, quando tiver um tempinho, e terminar de ler sua carta, que dê uma passadinha na minha sala, resolver umas coisinhas, sabe? Ok? – Um sorrisinho charmosíssimo lhe escapou quando se virava. O mesmo de todos os colegas e subordinados que estavam na recepção, a nos escutar...

Tentei: “Querido Amaro! Finalmente encontramos você, depois de tanto anos! Como você está? Teus amigos aqui querem... blá blá blá...”.
Eu não conseguia. Resolvi ir logo pro matadouro. E como era de se esperar, fui abatido.

Fiquei impressionado do quanto a vida pode ser injusta com alguém. Logo eu, que jamais desejei o mal de ninguém que não merecesse! Cretinos e suas cretinisses. Vou é pra casa, esperar o jornal de domingo. Mas não consegui pensar em nada no caminho de casa... Apenas uma sensação de impotência perante a injustiça que sofri...

É... Um café bem que poderia amenizar essa dor de cabeça. E tomei um “golaço” de meia xícara, antes de notar que esqui de adoçar dessa vez. Quando consegui desmanchar a careta, tirei o envelope do bolso, para finalmente descobrir o bendito remetente. Quem teria lembrado de mim no dia mais difícil de minha vida?

Não sei. Só sei que o envelope que achei no bolso era o encaminhamento para o seguro-desemprego... A carta, não achei. Aliás, vale lembrar que nunca a encontrei. Devo ter deixado na recepção, onde os colegas riam de minha desgraça. Me restava esperar o carteiro no dia seguinte, e perguntar se sabia de algo mais... Mas era outro, bem velhote... Contou-me que seu colega foi promovido e deixou de entregar. E que certamente mudara de cidade, não fazia a menor idéia de onde encontrá-lo.
Grande coisa. Tem tanto Amaro por aí. Na certa era um engano mesmo.

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