“Anda guri. Vai brincar na rua”. Era uma sentença, Olavo obedeceu. Jamais, sob circunstância alguma, questionava uma ordem de sua irmã. A mão era pesada, sempre certeira pela incerteza. Sempre surpreendia quando vinha, no contratempo da defesa, ou da esquiva. Poucas vezes foi melhor conseguir escapar, era pior mais tarde.
Puxando os calções para cima, o moleque foi saindo da soleira da porta, sob os cutucões da irmã mais velha, com pouco menos que o dobro de sua idade. E sua idade ele jamais pronunciava, apenas mostrava, quando perguntado, com os dedos espalmados de uma mão, descoordenadamente abrindo os outros dois dedos da segunda mão.
“Ligeiro, moleque, anda...” – aos empurrões apressando Olavo, que de má vontade foi se afastando da porta. Nem mesmo levantou os olhos para ver o homem que entrava pela porta de onde ele se levantava. Nem fazia diferença, nunca mais o veria mesmo, e se visse, não lembraria, eram tantos, às vezes, vários num só dia. E a porta tortuosa e feia do barraco rangeu aos trancos até que se fechasse, ficando apenas as frestas enormes. Parado, Olavo ficou olhando a luz apagar-se. Olhou para os lados, em silêncio, e em pé, como se esperasse alguma novidade que nunca aconteceria. Olhou para os barracos dos dois lados, e o silêncio macabro que ainda se fazia, como um suspense que ele preferia continuar ouvindo. Mas o susto invadiu-lhe subitamente, pela grossa camada de poeira que lhe cobriu a vista, vinda do deslocamento de ar de um apressado caminhão que lhe tirara um fino à beira do acostamento, poucos metros de onde as casas perfilavam-se.
Olavo normalmente era atento, e certamente o moleque de sete anos mais sabido do mundo. Sabia direitinho que caminhões tinham gente estranha dentro. Normalmente eram os que mais se demoravam quando paravam.
Mais uma forte baforada, outro caminhão... E decidiu afastar-se um pouco do acostamento. Não temia a morte. Apenas a dor, que era só o que compreendia. E imaginava que “ser pego” doía muito. Lembrava-se, e afastava-se, mas sempre atento à cena atraente dos caminhões que vinham crescendo no horizonte, até agigantarem-se tanto, e deixarem somente seus rastros de poeira e vento, antes de encolherem novamente no horizonte oposto.
A pele amorenada e manchada de pequenos círculos brancos espalhados pelo rosto e corpo estava ficando fria ao sol de fim de tarde, pois vestia apenas aquele enorme calção vermelho e sujo. Sujo como estava seu rosto, de poeira e lágrima provocada pelo vento. Fitava a casa. Em breve a porta abriria, e o homem que entrou sairia, com um pito nos beiços e expressão de sacies. Era sempre assim, de uns tempos pra cá. E era assim também nas casas aos lados. Mas Leandra ultimamente estava sendo a mais visitada. A natureza seguia seu curso, e era preciso extrair daquele lapso de tempo seu único presente rentável: A beleza.
Mas estava demorando muito... A impaciência de Olavo crescia, e incomodava-o. Sentia-se profundamente sozinho, como normalmente não acontecia. Fitou a porta, e ela não abria, e sua imaginação o fazia quase crer que estava se abrindo. Mas não abria.
Olhava para trás, tentava distrair-se com o caminhão que passava, e fazia onda com folhas sobre o asfalto. Mas era angustiante, pois a porta atrás dele não se abria, e Leandra não o chamava. A angústia lhe fez ter vontade de ir até a porta. Mas sabia que a surra era certa depois. A irmã sempre o chamava de muitos nomes estranhos quando a desobedecia, e sua mão era mais pesada que sua voz. Mas uma sensação de pânico ia crescendo, estranhamente, no peito do menino sujismundo.
Voltou a olhar a porta, fazendo esforço mental para vê-la abrir, o homem sair, e Leandra, depois de uns minutos, o chamar. Sempre levava um tempo, suficiente para o homem entrar de volta no caminhão, ligar, e ir embora. Ela o chamaria. Mas a porta não abria. O pânico e sensação profunda de solidão venceriam em breve o medo de apanhar.
À beira do acostamento, naquela ilha perdida num mundo incompreensível e de pedras cinzas, Olavo estava em pé à beira do acostamento, olhando para seu lar com a porta cerrada, desesperadamente esperando. E desejou profundamente a pesada mão de sua irmã estapeando-lhe o lombo, desde que dando-lhe alguma atenção. E precipitou-se a correr na direção da casa, de olhos entornados d’água. E meio metro antes de chocar-se com a porta, assustou-se com o rangido de sua abertura. Ela escancarava-se.
Parado, atônito, assustado e ao mesmo tempo aliviado, olhou para cima, e para o rosto do homem que saia. Ele sempre odiava os homens que entravam e saiam da casa onde vivia com sua irmã, e sua mãe quase nunca presente. O homem olhou para Olavo, bem nos olhos, e o medo o fez ficar imóvel. Imaginou que o bofete de um homem daquele tamanho doeria como se o caminhão o tivesse acertado, e quando ele ergueu a mão em direção ao meninote, este espremeu os olhos, tenso. Um breve afago no cocuruto, e algo que lhe foi enfiado na palma da mão, agarrado instintivamente, sem ao menos olhar. E o homem se foi, assoviando.
Parado. Olavo ficou ali, olhando o homem ir em direção à estrada, para seu caminhão fazedor de ventos. Então olhou para a própria mão, e viu algumas cédulas de uns poucos reais. E uma bala de mel. O sorriso estampou-lhe a face, e desembrulhou rapidamente a bala metendo na boca, correndo rápido para dentro do casebre torto, com o braço estendido com as notas na mão, a fim de entregá-las à irmã, o que sempre fazia quando lhe davam algum dinheiro. Entrou na cozinha a pique, sem notar que a menina se lavava, nua, numa bacia de alumínio amassada. Uns tortolhos e uns gritos, e ele saiu chorando de dentro de casa. Mas cessou as lágrimas de imediato quando viu o homem e seu caminhão partirem.
O som forte dos freios a ar lhe encantavam. Atento a cada manobra do caminhão para sair na ponte que ligava Porto Alegre às demais cidades satélites, a criança sentia-se diferente. Pela primeira vez achou que veria o homem novamente. E pela primeira vez, abanou para um caminhão que partia. Ansioso por vê-lo encolhendo no horizonte, e aproveitar-lhe o máximo a presença. E olhando, distraído, nem sentiu cair-lhe a bala da boca. E quando notou, já tinha havia caído na areia suja, chegou a abaixar-se para juntá-la, mas teve nojo. Voltou rápido os olhos para a estrada, porém, não havia mais nada. Foi a primeira vez que Olavo entendeu que havia algo nas outras pontas daquela estrada. E foi então que decidiu que viveria o bastante para descobrir o que era.
Puxando os calções para cima, o moleque foi saindo da soleira da porta, sob os cutucões da irmã mais velha, com pouco menos que o dobro de sua idade. E sua idade ele jamais pronunciava, apenas mostrava, quando perguntado, com os dedos espalmados de uma mão, descoordenadamente abrindo os outros dois dedos da segunda mão.
“Ligeiro, moleque, anda...” – aos empurrões apressando Olavo, que de má vontade foi se afastando da porta. Nem mesmo levantou os olhos para ver o homem que entrava pela porta de onde ele se levantava. Nem fazia diferença, nunca mais o veria mesmo, e se visse, não lembraria, eram tantos, às vezes, vários num só dia. E a porta tortuosa e feia do barraco rangeu aos trancos até que se fechasse, ficando apenas as frestas enormes. Parado, Olavo ficou olhando a luz apagar-se. Olhou para os lados, em silêncio, e em pé, como se esperasse alguma novidade que nunca aconteceria. Olhou para os barracos dos dois lados, e o silêncio macabro que ainda se fazia, como um suspense que ele preferia continuar ouvindo. Mas o susto invadiu-lhe subitamente, pela grossa camada de poeira que lhe cobriu a vista, vinda do deslocamento de ar de um apressado caminhão que lhe tirara um fino à beira do acostamento, poucos metros de onde as casas perfilavam-se.
Olavo normalmente era atento, e certamente o moleque de sete anos mais sabido do mundo. Sabia direitinho que caminhões tinham gente estranha dentro. Normalmente eram os que mais se demoravam quando paravam.
Mais uma forte baforada, outro caminhão... E decidiu afastar-se um pouco do acostamento. Não temia a morte. Apenas a dor, que era só o que compreendia. E imaginava que “ser pego” doía muito. Lembrava-se, e afastava-se, mas sempre atento à cena atraente dos caminhões que vinham crescendo no horizonte, até agigantarem-se tanto, e deixarem somente seus rastros de poeira e vento, antes de encolherem novamente no horizonte oposto.
A pele amorenada e manchada de pequenos círculos brancos espalhados pelo rosto e corpo estava ficando fria ao sol de fim de tarde, pois vestia apenas aquele enorme calção vermelho e sujo. Sujo como estava seu rosto, de poeira e lágrima provocada pelo vento. Fitava a casa. Em breve a porta abriria, e o homem que entrou sairia, com um pito nos beiços e expressão de sacies. Era sempre assim, de uns tempos pra cá. E era assim também nas casas aos lados. Mas Leandra ultimamente estava sendo a mais visitada. A natureza seguia seu curso, e era preciso extrair daquele lapso de tempo seu único presente rentável: A beleza.
Mas estava demorando muito... A impaciência de Olavo crescia, e incomodava-o. Sentia-se profundamente sozinho, como normalmente não acontecia. Fitou a porta, e ela não abria, e sua imaginação o fazia quase crer que estava se abrindo. Mas não abria.
Olhava para trás, tentava distrair-se com o caminhão que passava, e fazia onda com folhas sobre o asfalto. Mas era angustiante, pois a porta atrás dele não se abria, e Leandra não o chamava. A angústia lhe fez ter vontade de ir até a porta. Mas sabia que a surra era certa depois. A irmã sempre o chamava de muitos nomes estranhos quando a desobedecia, e sua mão era mais pesada que sua voz. Mas uma sensação de pânico ia crescendo, estranhamente, no peito do menino sujismundo.
Voltou a olhar a porta, fazendo esforço mental para vê-la abrir, o homem sair, e Leandra, depois de uns minutos, o chamar. Sempre levava um tempo, suficiente para o homem entrar de volta no caminhão, ligar, e ir embora. Ela o chamaria. Mas a porta não abria. O pânico e sensação profunda de solidão venceriam em breve o medo de apanhar.
À beira do acostamento, naquela ilha perdida num mundo incompreensível e de pedras cinzas, Olavo estava em pé à beira do acostamento, olhando para seu lar com a porta cerrada, desesperadamente esperando. E desejou profundamente a pesada mão de sua irmã estapeando-lhe o lombo, desde que dando-lhe alguma atenção. E precipitou-se a correr na direção da casa, de olhos entornados d’água. E meio metro antes de chocar-se com a porta, assustou-se com o rangido de sua abertura. Ela escancarava-se.
Parado, atônito, assustado e ao mesmo tempo aliviado, olhou para cima, e para o rosto do homem que saia. Ele sempre odiava os homens que entravam e saiam da casa onde vivia com sua irmã, e sua mãe quase nunca presente. O homem olhou para Olavo, bem nos olhos, e o medo o fez ficar imóvel. Imaginou que o bofete de um homem daquele tamanho doeria como se o caminhão o tivesse acertado, e quando ele ergueu a mão em direção ao meninote, este espremeu os olhos, tenso. Um breve afago no cocuruto, e algo que lhe foi enfiado na palma da mão, agarrado instintivamente, sem ao menos olhar. E o homem se foi, assoviando.
Parado. Olavo ficou ali, olhando o homem ir em direção à estrada, para seu caminhão fazedor de ventos. Então olhou para a própria mão, e viu algumas cédulas de uns poucos reais. E uma bala de mel. O sorriso estampou-lhe a face, e desembrulhou rapidamente a bala metendo na boca, correndo rápido para dentro do casebre torto, com o braço estendido com as notas na mão, a fim de entregá-las à irmã, o que sempre fazia quando lhe davam algum dinheiro. Entrou na cozinha a pique, sem notar que a menina se lavava, nua, numa bacia de alumínio amassada. Uns tortolhos e uns gritos, e ele saiu chorando de dentro de casa. Mas cessou as lágrimas de imediato quando viu o homem e seu caminhão partirem.
O som forte dos freios a ar lhe encantavam. Atento a cada manobra do caminhão para sair na ponte que ligava Porto Alegre às demais cidades satélites, a criança sentia-se diferente. Pela primeira vez achou que veria o homem novamente. E pela primeira vez, abanou para um caminhão que partia. Ansioso por vê-lo encolhendo no horizonte, e aproveitar-lhe o máximo a presença. E olhando, distraído, nem sentiu cair-lhe a bala da boca. E quando notou, já tinha havia caído na areia suja, chegou a abaixar-se para juntá-la, mas teve nojo. Voltou rápido os olhos para a estrada, porém, não havia mais nada. Foi a primeira vez que Olavo entendeu que havia algo nas outras pontas daquela estrada. E foi então que decidiu que viveria o bastante para descobrir o que era.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por registrar sua impressão.